Provavelmente você já deve ter escutado ou visto a preocupação dos pais em relação às alterações intestinais dos filhos, principalmente enquanto bebês. A verdade é que a constipação e as alergias alimentares atingem quase 30% da população pediátrica. Sendo que 35 a 52% dessas crianças sofrem com os sintomas durante anos e quase um terço tem constipação na fase adulta. Geralmente a principal queixa de quem tem alergia ao leite é a diarreia, por isso, como identificar se o leite de vaca é ou não o causador da constipação?
Primeiro precisamos entender como ocorre o diagnóstico de constipação. De acordo com os critérios pediátricos de Roma IV, a constipação é definida pela presença de dois ou mais dos seguintes sintomas durante no mínimo um mês e não pode estar relacionado com outras condições médicas:
- menos de três evacuações por semana;
- pelo menos um episódio de incontinência fecal por semana após a aquisição de competências sanitárias;
- postura retentora ou retenção excessiva de fezes volitivas;
- movimentos intestinais dolorosos ou duros;
- presença de uma grande massa fecal no reto ou historial de obstrução da sanita por grandes fezes.
Por isso que fatores ambientais, comportamentais, imunológicos e genéticos são os que mais contribuem para o quadro e geram alteração na função de barreira (pele, intestino) e afetam as vias imunitárias. Sabendo disso, o público mais vulnerável são os autistas, crianças com complicações neurológicas ou motoras, atopia e alergias alimentares, que sofreram de abuso sexual, violência ou estresse psicológico.
Vale ressaltar que a microbiota desempenha um papel central no desenvolvimento da alergia alimentar. Estudos recentes sugerem que as bactérias comensais protegem contra a alergia alimentar. Em contraste, a disbiose prejudica esta resposta regulamentar e promove a doença alérgica, pois tanto os metabólitos gerados por bactérias comensais, como os derivados da dieta, regulam a tolerância imunitária da mucosa, e promovem a integridade da barreira epitelial.
Leite de Vaca x Constipação
O leite de vaca é o alergênico alimentar mais comum reconhecido por afetar a motilidade gastrointestinal das crianças, principalmente através de reações não mediadas por IgE. O desenvolvimento dessa alergia pode estar associada à duração mais curta da amamentação e à exposição precoce ao leite de vaca em bebés e crianças.
Sintomas Frequentes na Constipação
Normalmente, as crianças com obstipação relacionada ao leite de vaca têm outras manifestações clínicas (tais como eczema e rinite alérgica), ou sintomas no trato gastrointestinal (tais como regurgitação). Os sintomas podem ocorrer de forma conjunta, começando pela regurgitação ou diarreia infantil e progredindo para a obstipação e dermatite ou manifestações respiratórias anos mais tarde. E da mesma forma, a obstipação também pode ser a única manifestação relatada por esses indivíduos.
De uma forma geral, os sintomas mais comuns são a regurgitação, vômitos, recusa ou aversão alimentar, fraco crescimento, cólicas, dor abdominal, diarreia e obstipação. Como muitos destes sintomas estão também presentes na doença de refluxo e nas perturbações gastrointestinais, a distinção entre casos alérgicos e não alérgicos muitas vezes se torna difícil. Contudo, é essencial fazer o diagnóstico precoce, uma vez que os sintomas são passíveis de modificação dietética.
Diagnóstico de constipação associada a alergias alimentares
Um diagnóstico formal da constipação por alergia alimentar é feito através da eliminação durante 2-4 semanas do leite de vaca. Se os sintomas desaparecem durante a dieta de eliminação e reaparecem com a reintrodução, pode então ser estabelecida uma ligação causal. Esse método é eficaz, pois a obstipação muitas vezes não é mediada por IgE, e por isso os testes para IgE específica de alimentos se tornam inconclusivos. Dessa forma, a exclusão pode ser feita para fins terapêuticos e depois gradualmente reintroduzida como tolerada.
Com isso, falta de diagnóstico pode comprometer a nutrição e o crescimento dessas crianças, e pode reduzir a qualidade de vida tanto do paciente como da família, sendo que o diagnóstico tardio é mais comum nas alergias não mediadas por IgE.
Tratamentos
As diretrizes recomendam educação, modificações de comportamento, atividade física adequada, uma ingestão normal por idade de fibras e água, progredindo se necessário para tratamentos farmacológicos. A dieta de eliminação é normalmente utilizada como um suplemento de tratamento às terapias convencionais, embora apenas a dieta já possa levar ao alívio dos sintomas.
Vale ressaltar que no caso de lactentes recomenda-se a continuação da amamentação, porém a mãe deve evitar todos os produtos lácteos, essa mudança requer um acompanhamento de perto para proteger a segurança nutricional tanto da mãe como do bebé. Quando o leite humano não está disponível ou é insuficiente, recomenda-se o uso de fórmulas hipoalergênicas, elas podem variar quanto à fonte e conteúdo proteico, método e grau de hidrólise e componentes adicionais, que afetam a tolerância e eficácia. Outras alternativas ao leite à base de plantas não são completas no aspecto nutricional, e estão contraindicadas como substitutos do leite de vaca em lactentes.
A maioria das crianças respondem bem apenas com a eliminação do leite da dieta. Dessa forma, a eliminação de múltiplos alimentos só é necessária dependendo da gravidade ou persistência dos sintomas. Nesse caso, cada alimento deve ser retirado separadamente e requer um apoio médico e dietético próximo para otimizar a aderência e a nutrição.
Prática Clínica
A constipação é a perturbação gastrointestinal mais frequente nas crianças e muitas delas apresentam sintomas crônicos que requerem tratamento prolongado. Sabendo dos desafios de adesão, custo elevado para investigações adicionais, e consultas repetidas geram impactos elevados na rotina da família. O diagnóstico mais eficaz é a eliminação de produtos lácteos durante 4 semanas, assim se os sintomas desaparecem durante essa fase e reaparecem com a reintrodução, pode então ser estabelecida uma ligação entre a constipação e o consumo de leite. Essa abordagem evita testes invasivos desnecessários ou tratamento prolongado com medicamentos que requerem aderência e continuidade. A avaliação nutricional deve ser recomendada para evitar deficiências de macro e micronutrientes durante a dieta.
Referências Bibliográficas
Sugestão de estudo: Entenda mais a respeito da alergia à proteína do leite de vaca – Science Play
Assista o vídeo na Science Play com Karina Al Assal: Eixo intestino e cérebro, estratégias na prática
Artigo: Connor F, Salvatore S, D’Auria E, Baldassarre ME, Acunzo M, Di Bella G, Farella I, Sestito S, Pensabene L. Cows’ Milk Allergy-Associated Constipation: When to Look for It? A Narrative Review. Nutrients. 2022; 14(6):1317. https://doi.org/10.3390/nu14061317